Não tinha chegado a dizê-lo, mas o «Diário Íntimo» do Manuel Laranjeira, li-o há dias numa biblioteca pública, aproveitando o tempo durante o qual muitos outros almoçam. Mas ontem que foi sábado, encontrei-o, muito escondido e como se agachado num alfarrabista do Chiado. E esta manhã, ao acordar tarde, com a angústia de já passar das dez, um súbito ímpeto levou-me a ler-lhe o prefácio, o que na altura desconsiderara. Escreveu-o Alberto de Serpa. O prefaciador conheceu o prefaciado e sente-se que o absolve, àquele «pessimista místico», desencontrado com Deus, aquele que viveu «pedindo à existência terrena perfeição e paz que nunca podem ser dela» e morreu com as próprias mãos. Mas um «Diário Íntimo», um diário de amores, é algo de tão próprio, tão único e tão singular, que editá-lo é como que vingar um morto, ante a nudez embaraçosa dos vivos. Mas quando há delicadeza e carinho pelo outro escreve-se como ele escreveu, a justificar-se: «um quinquagenário sabe já bem quanto meio século é pouca coisa, e por tal fui-me às inciais, aos prenomes e aos apelidos com que Laranjeira indicou personagens femininas de ainda possível descoberta, e dei-lhes uma simples letra».