Reconciliei-me, até mais ver, com o António Lobo Antunes, e decidi-me então a conhecer-lhe a escrita. Esqueço o homem e o modo como se descreve, em constante adjectivação de si. Comecei, atrasado vinte e oito anos, com «A Memória de Elefante». Passo adiante dos escancardos palavrões, que enxameiam o texto para além do necessário, mesmo quando proferidos por bocas reais, nas quais são linguagem comum, menos suja a língua do que a alma. Evito subrogar-me, envergonhado, à família quando na sua narrativa descreve factos, dos mais íntimos aos mais torpes, em que os envolve, incluindo os dolorosos e os ternos, como se em cada página matasse de desgosto a própria mãe, expusesse da mulher a própria nudez.
António Lobo Antunes atira-se, de borco, para a sua escrita, mesmo quando sórdida, enlameando-se nela, onde raramente encontramos um momento em que o vejamos sentir a grandeza do momento grande que sabe criar.
É, tenho de o reconhecer, um modo magnífico de escrever o que sente, de descrever sentidamente o que vê. Vou em frente no livro, lerei todos os livros, mesmo quando, já me preveniram, ele muda de estilo e se torna ilegível, dizem-me.
A acção aqui decorre num hospital, a personagem um psiquiatra, filho de médico, traumatizado pela sua condição burguesa, agredido nas suas memórias pela vivido na guerra colonial, esfarelado por uma sensibilidade que quase lhe desintegra o entendimento. É «o que outros chamamos de loucura, que é afinal a nossa e da qual nos protegemos ao etiquetá-la».
Leio e pergunto-me se muitos dos que se dizem seus leitores, por gostarem dele, o serão de facto mais do que eu, que o detesto e aprendi a amar-lhe a escrita. Talvez sejam os olhos azuis que marquem a diferença. Não sei. Deixem-me ler.