Já não sei há quanto tempo tinha deixado de usar relógio. Primeiro, foi para não me enervar, no incessante olhar para o mostrador, a angústia de ser tão tarde. Nessa altura não havia ainda telemóveis, pelo que não se viam as horas a olhar para o telefone. Depois, foi porque o relógio deixou de ser um instrumento para se saberem as horas que faltava perder com a sua passagem ou as que se tinham ganho deixando-as passar, e transformou-se num acto de exibicionismo, usado quase em cima da mão, fora da camisa, para que todos o vissem e lhe adivinhassem o preço, como quem passeia mulher vistosa para inveja do vizinho, ou automóvel de luxo para raiva dos colegas.
Ontem ofereceram-me um lindo e discreto relógio com marca de relógio, ponteiros de relógio, daqueles que marcam horas e numa janelinha que dia é. Saí com ele hoje à rua, a passeá-lo, com o orgulho de o saber escondido dos outros, num agrado só meu. Houve um momento em que vi, no seu quadrante dividido em sessenta partes, que eram onze e quarenta, vinte para o meio-dia.Uma sensação de conforto com a vida invadiu-me, a lembrança antiga de ser quase a hora de almoço.