Trancam a porta e barricam-se em casa. Deixam de telefonar, primeiro, de atender o telefone depois. Na cidade irrequieta, o formigueiro de gente super-ocupada nem dá, na sua agitação indiferente, pela sua falta. Apenas aqueles para quem os dias são inesgotavelmente vazios e o tempo esgotantemente breve notam qualquer vazio. Comenta-se no jardim antes de mudar de assunto, no café da rua à falta de outro assunto. Deixaram de ser vistos.
No interior da sua reclusão, começa então a preparação do covil do animal moribundo. Amontoa-se o inútil, atulham-se os pequenos quartos com tudo o que não serve, pacotes de leite vazios, uma imensidão de sacos plásticos contendo de tudo um pouco e papéis e caixas e restos de tudo o que pode restar, sobejos, inutilidades, farrapos. Uma fina camada de pó vai soterrando tudo, o ar envenena-se de irrespirável.
A raiva de viver torna-se então na preguiça de consentir a sobrevivência. Num voltear incessante, remexendo no que está, há uma fera que vai soltando as suas garras, desprendendo-se do que a prende à vida.
Um dia acaba tudo naquele antro de miséria fétida. Os sobreviventes fingem não ter dado conta. Há um silêncio de remorsos que se resolve num dia de funeral, a cidade sem saber.
No dia seguinte cada um, em sua casa, remoe os seus rancores, trancando a porta, barricando a sua alma. Em seu redor o formigueiro continua, indiferente ao apodrecimento das almas que matamos no nosso coração.