Compreende-se agora, quando se progride na leitura, porque se chama O Apocalipse dos Trabalhadores. Valter Hugo Mãe traz à nossa literatura Andriy e Sasha e a Ekaterine, de Korosten, perto de Chernobyl, na Ucrânia. Andriy emigrado para Portugal, o ser mecânico, robotizado, de quem o país emprega os robustos músculos e a rotina de não pensar, que não lhe querem o pensamento nem sentimentos mas, no trabalho braçal, só a mecânica dos gestos, de quem Quitéria se serve do ritual de cada um dos actos que no sexo se aplicam, essa satisfação necessária.
É uma história em que há também Maria da Graça e o senhor Ferreira e o seu pai, tetraplégico, «quadrúpede de tristeza», e a guarda de polícia Quental, a monotonia e o desejo, mais o emprego de carpideira e o trabalhar nas obras, tudo em Bragança, em Vinhais, em Portugal, que na história é o nome de um cão.
É um livro magnífico de gente «com vontade de não se ver existir».
Lia ontem, voltado ao livro, para chegar a «sete milhões de ucranianos morreram à fome nos anos trinta e dois e trinta e três do século vinte», mais «os sete milhões de mortos na segunda guerra mundial», e os mortos mais os afectados pela catástrofe de Chernobyl.
Foi então, com vergonha de ser humano e de ter vivido neste século que, comigo, «na cozinha dos Shevchenko sentavam-se mais de catorze milhões de mortos a olhar para os pratos de sopa». Com fome.
Ei-los enfim chegados à literatura e aos campos de trabalho: os ucranianos e a raiva de sobreviver. Obrigado pela memória e por escreveres tão bem.