8.11.05

Superstição ao fim do dia

É coisa rara hoje usarem-se termos da mitologia clássica. É coisa rara eu comprar um livro do Saramago. É coisa rara encontrarem-se livros do Aquilino Ribeiro, pois a Bertrand deixa-os esgotar e não os reedita, ou pelo menos é o que parece. Agora somadas todas estas raridades vejam o que é esta coisa notável. Fui hoje a uma livraria, porque por acaso se atrasou a hora de uma reunião. Andando pelo rodapé de uma estante dou de caras com um livro raro do Aquilino de que nunca tinha ouvido falar: «De Meca a Freixo de Espada à Cinta». Entretanto, andava ao rabusco por outra estante, ouço alguém perguntar o «tem cá o último livro do Saramago». Em suma, comprei o Aquilino mais o Saramago e mais uns tantos outros. Como tinha tempo fui plantar-me num café a folhear. O do Aquilino tinha uma dedicatória, em estilo de prefácio, «ao Dr. Heliodoro Caldeira, Grande Advogado, meu Patrono em Negros Delitos». Talvez por isso avancei curioso pelo prefácio, onde a linhas tantas de tal o autor do «Romance da Raposa» se põe a falar de um encerramento de uma urna de chumbo a que assistira. E a respeito escreve assim: «Vieram os alfaiates de cangalheiro e num ápice, um deles, com tesoira grande e indiferente como deve ser a de Átropos (...), etc., etc.». Visto o aquiliano prefácio, que é curto, guardando o livro para quando tiver tempo, atirei-me ao Saramago, o de «As Intermitências da Morte», a propósito de quem, ao lê-lo, me perdoo o mal que já pensei dele e o que venha a pensar no futuro e li ali: «A passagem do ano não tinha deixado atrás de si o habitual e calamitoso regueiro de óbitos, como se a velha átropos da dentuça arreganhada tivese resolvido embainhar a tesoura por um dia». Enfim, talvez seja melhor eu hoje ter cuidado comigo: um prefácio sobre um cangalheiro, um livro sobre a morte e tanto acaso junto sobre o ente que corta o fio da vida, é caso para regressar a casa e trancar-me dentro de um armário, à espera que chegue, enfim, o dia de amanhã. É que duas vezes numa mesma tarde tropeçar na palavra átropos, é demais para a minha esperança de vida!