Eu disse ontem aqui que estava a ler o livro de contos da Florbela Espanca, mas não disse que ele se chama «O Dominó Preto», nem que tinha conseguido ler o conto que dá nome ao livro, na ânsia que fosse o melhor. O tom geral da escrita é aquela calda lacrimosa e adocicada que torna cada uma das linhas como se uma caminhada dissolvente e contribui para a enervação do leitor. A história é a do marçano plebeu, o José, que se enamora da longínqua e distinta cliente, a Maria, e que por marcar encontro em noite de Carnaval num jardim público ao qual ela não aparece, se mata, insolitamente à facada. Como personagem que se preza, o José morre mesmo, no último parágrafo do conto, com uma andorinha a ajudar à cena, passando-lhe veloz «rente à cara dele, com um gritinho de alegria». É assim. A surpresa é que há na narrativa aqueles momentos de lubricidade oculta, como mão discreta entre rendinhas íntimas: não é tanto o dar-se o leitor a perceber nela o «passinho grácil», a «boca fresca» de «polpa carnuda e sumarenta de um morango acabado de colher»; é mais aquele passo em que o José lhe ouve, em imaginação doente, «o riso garoto cheio de reticências, evocador de carícias proibidas e desejadas, o riso que às vezes lhe fazia vir à ideia coisas em que seria melhor não pensar». Num seu diário Florbela definiu-se como «casta sem formalidades», «a palpitar de seiva quente». Percebe-se, e muito bem.