4.4.06

O acaso a um euro

Num país em que a maioria dos que lêem são leitoras, eu tenho uma especial propensão por escritoras. Uma delas, como já percebeu quem me lê, é a Maria Ondina Braga, já falecida em Braga precisamente. Só que o destino tem momentos fantásticos de inesperado. Regressado de mais um dia de esgotamento profissional, achei que merecia dar umas voltas sem nexo pelas ruas do meu bairro. Àquela hora saíam dos escritórios, exauridos, os empregados por conta alheia, a vertigem do recolher, a angústia do atraso estampada no rosto, os nervos a expressarem-se em buzinadelas, os rancores na impaciência de cada gesto. Foi então que eu os encontrei, o pequeno ajuntamento de vendedores de velharias, já a empacotarem o que amanhã, uma vez mais, desembrulharão, para tornarem a expor, na mira de os vender, aquele um pouco de tudo já passado, onde há a novidade das surpresas. No meu caso foram duas. Falo aqui de uma delas. Como já dei a entender tenho uma predilecção especial pelo Graham Greene, sobre quem já escrevi em outro local. Então não é que ele ali estava, a «um euro», o seu livro «O Cônsul Honorário», naquela edição encadernada publicada em Junho de 1974 pelo Círculo de Leitores e que a Ondina Braga traduziu? Tenho-o aqui comigo nesta hora já tardia. Sei que não tenho tempo para o ler, nem à edição inglesa que comprara já nem sei onde nem quando, na altura em que comecei a reunir a sua obra.Mas fico-me por uma recordação, a de ter lido numa entrevista da Maria Ondina, em que ela se queixava de ter partido as costas a matraquear à máquina, traduzindo e traduzindo, para ganhar o seu magro sustento. Ao olhar para estas folhas amarelecidas, ao rever cada uma das suas letras que lhe enchem as páginas, eu sinto o alquebrar de um dia esgotante, o corpo carregado de dores, os dedos entumescidos, a alma entristecida, a miséria de tudo terminar a um euro, num jardim, sem nexo e por acaso.