Ontem na Cinemateca por um súbito desejo, fruto de uma prolongada carência: a sala estava cheia.
Há no Othello de Orson Welles o rasgar da sensibilidade do espectador pela sucessão de planos de luz e de escuridão, a penumbra como lugar de expectativa.
Sim, do ponto de vista estritamente cinematográfico é isso, mais o ritmo alucinante da narrativa, os planos arrojados de enviesamento da imagem, os ângulos de observação, os grandes cortes picados, em que a expressão humana invade a sala e com ela jorra um sentimento que fere, agride, dói. E depois há a voz, a corpulência, tudo o que no criador de Citizen Kane impressiona, marca, se apresenta.
Mas há mais, porque há uma obra literária contada em trinta e cinco milímetros.
A tragédia daquele Othello é, sim, a da existência, a de ser-se o que se é, como ele nos diz no diálogo final, visto do alto da cripta onde fez alcova, o tálamo onde comete o seu horrendo crime amoroso, por um funesto amor.
Está ali o mercador de Veneza, marioneta humana às mãos de Iago, essa personagem que na sua amoralidade exprime o pior do renascentismo, a falta de escrúpulos como uma das belas artes. Nisso está fielmente presente William Shakespeare, como em Macbeth.
Mas está mais, muitíssimo mais, a ditar a grandeza do filme, a lição de uma noite: história de horror humano, ao findar o quinto acto, Othello mata Desdemona não pelo ódio do ciúme, mas pelo tão magoado e insuportável desprezo por si. Ganindo de dor, a sua alma dilacera-se à ideia de que ela se lhe entregou, a ele como porventura a tantos outros, tentada pela luxúria da sua inferioridade, mouro, negro, aquele para quem a dúvida mortal é, afinal, o prenúncio do desejo de morrer.
Othello mata para se matar e mata-se de novo. Estranha, invulgar, única forma de viver um amor, fruto do desespero de se julgar assim amado.