Tinha-o lido descuidadamente. Na altura notei o óbvio, os murgos biliosos, os caules de gisandra, o revérbero entre as nuvens e as misagras, a duna com tanta areia, as aranhas e a teia de sal, os velhos itinerários, relâmpagos de carbureto.
Depois de Finisterra, comprei Uma Abelha na Chuva, de que Fernando Lopes fez cinema, e a um e um tenho comigo todos os livros que o Carlos de Oliveira escreveu. E mesmo o livro que Carlos de Oliveira renegou, a Alcateia.
E depois, porque há sempre um depois nos nossos amores literários, tendo já tudo, naquelas edições em azul da Assírio e Alvim, comprei o volume da Caminho, encadernado, sóbrio, em excesso e duplicação, só por ter a Casa na Duna que voltaria a encontrar na edição da Portugália, que trouxe para casa por causa da capa do João da Câmara Leme.
Retomei-o hoje, deliberadamente. Maravilho-me.
Todos quantos lêm depressa, não leiam! Abstenham-se os devoradores de palavras, os do fast food literário, pedalantes leitores do sprint da novidade, camisolas amarelas do vien de paraître.
Finisterra é um prodígio cinematográfico para se estudar o que se lê. Cada palavra por si e há que voltar atrás e fazer a ligação, ponto por ponto para que a figura ganhe corpo.
Tudo ali arranca de uma fotografia que reproduz a paisagem que a criança descreve, vendo-a de uma janela, num caderno que o homem lê. Tudo continua na almofada que reproduz, em traço geométrico e sugere o mesmo em gravura abstracta, o que da janela se alcança de na fotografia se condensa. Tudo se esgota na folha perdida nos papéis de família e suas notas sobre o povoamento, povoações temporárias, os camponeses de passagem. E o vento, a presença desse vento milenário e suas areias, dunas sobre dunas a perder de vista, as cores crestadas, os lugares malignos em nossa casa, que não merecemos.
Carlos de Oliveira mais do que escrever, desenha, é o arquitecto da realidade e o geómetra da irrealidade. Finisterra é um jogo de volumetrias, de tonalidades, de planos de corte, de projecções de espaços substantivos em planos não poliédricos.
E, no fim, em excelência, a sussurrar que «na paisagem, na fotografia, na almofada, não havia ninguém. Pois não. E eu povoei-as. Quer dizer, povoei o desenho a pensar nelas». Vem na página 16. Da edição da Assírio. A que vou continuar a ler.