30.9.05

O intervalo

Os dias em que não se escreve, não são dias em que não se pensa, são apenas dias em que não se vive. A vida é isto, o intervalo entre capítulos. Chegando ao fim, percebe-se pelo índice como foi, até lá, é melhor nem saber.

29.9.05

Um corpo inteiro, uma alma partida

Não, não é preciso um homem desdobrar-se em vários, para alimentar vários personagens. Não, não é preciso socorrer-se da heteronímia para se ser mais do que um. Basta ser-se inteiro. Está reunida a primeira condição. A partir daí é só preciso um homem ir-se partindo, aos bocadinhos.

28.9.05

Vida de cão

Um meu amigo, inteligente e risonho, qualidades que raramente se conjugam, contou que o fogoso Camilo tinha, na ânsia de um emprego, oferecido ao carrancudo Herculano, um cão, para que este, animado pela gentileza, lhe arranjasse um qualquer ganha-pão suficiente. E contou mais que, como o emprego não vinha, pois que dependente de políticos, que caíam no Parlamento como tordos na canícula, o escritor de São Miguel de Seide não esteve para mais: veio ressabiado a Lisboa, e passando em frente da casa do historiador, aí vai de assobio, e num ápice tinha o cão de volta. Tudo isto tem um sabor a passado; hoje, nem os cães conhecem o dono, nem os empregos se arranjam à força de cão. O que ainda resta é o assobiar, nem que seja para o ar.

26.9.05

A esquina da vida

Para os que vieram hoje a esta esquina ver se me encontravam, saibam só que eu passei por aqui. Nada mais tem importância. Amanhã talvez volte, mesmo sem motivo, cão a passear ou jantar a digerir.

25.9.05

A morte anunciada nos céus

Li que o rouxinol dos caniços, migrante, voa três mil e quinhentas milhas de Portugal para a Mauritânia e Guiné-Bissau, sobrevivendo ao deserto do Sahara. E li que este ano, ante a seca do Verão em Portugal, estão ameaçados de morte, aos milhares, no Outono. Vêem-se na Ria Formosa, ignorando a morte anunciada.

24.9.05

O muro

A frase ali estava, visível na parede branca: não existe inveja no reino da esperança. Na rua, cozido com a parede, como se nem o muro existisse, um homem arquejava com uma guitarra. Numa das mãos o peso da sua caixa, no coração o seu som sem esperança.

Embuchado

Nas escopetas de carregar pela boca havia a bucha sem coice. A arma não tinha ressalto, o ponto de mira era fiel. Apertava-se tudo com uma vareta. Premido o gatilho, saltavam os miolos. Os amigos lamentavam e a vida seguia. Lembrei-me disto em Silves, num museu vivo de uma fábrica morta.

22.9.05

O cobrador de fraque

Assolado agora pela irada multidão e recalcitrante, a dos credores do tempo, ansiosos reclamantes do capital do afecto e dos juros de uma atenção, trancado em casa, entre a vergonha do débito e a impossibilidade de o cumprir, há um homem que revê os compromissos que assumiu, as promissórias que assinou, as expectativas que foi criando. Mais atrevidos os que clamam pelos deveres em atraso, os da profissão e os sociais, estão perto de lhe franquear a porta, arrombando-lha, expondo-lhe a vergonha. Outros, entre o condescendente e o resignado, aguardam, sem esperança, a sua vez, sentados no patamar da última ocasião. Para todos esses, os que como ele chegam à impossibilidade de solver, inventou-se a ideia da falência. É um opróbio segurante, mas é a moratória forçada de tudo o que se deve. Nem uma doença que o fulminasse o salvaria do que deve: ficaria a má fama, o fantasma do cobrador de fraque a persegui-lo ao fim dos tempos, estivesse nos altos céus, ou devolvido aos baixios de um outro inferno.

21.9.05

O homem abreviado

Há vidas assim, rudes e esgotantes. Felizmente são breves, no mal que fazem e no bem que sabem.

19.9.05

Satisfaz duas vezes

A cultura de parede é aquilo que os nómadas letrados partilham com os cães analfabetos: ambos aliviam ali as suas aflições. Numa delas vi há anos escrito o «tudo tem um fim, excepto a salsicha que tem dois». Só um desesperado em estado terminal escreve uma coisas destas: não é só o desejo de acabar; é o desejo de acabar duas vezes!

18.9.05

Numa só penada

E se eu escrevesse sobre a janela do abismo e a geometeria do ocaso? Na primeira sobre os suicidas da vida, os que vêem o mundo do alto e têm ânsias de profundidade? Na segunda sobre a contigência do espaço que acaba e a probabilidade do tempo que se vai, os que vivem a vida por baixo, soterrados de deveres. Tinha nisso pelo menos uma grande vantagem. Numa só penada arrumava dois blogs e numa só noite!

A Revolta das Palavras

Já houve quem, com amabilidade, ironizasse o facto de eu ir encerrando os blogs que criara. Para que se perceba que também aqui não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe, aqui vem a notícia: repus no ciber-espaço o velho blog «A Revolta das Palavras», homónimo de uma coluna que expirou no «Diário de Notícias». Na lateral fica o «link» respectivo.

Separados de facto

Numa parede da Rua de São Bento, alguém escreveu em tempos «não quero viver num mundo em que ideias e sentimentos sejam coisas separadas».
Esse alguém, deve ter-se exilado daqui. Prudentemente a Câmara mandou pintar a parede. Se a frase pegasse o país evadia-se!

17.9.05

Juro!

O António Variações cantou o fiz dos teus cabelos a minha bandeira, a propósito de Amália. O juro que não envelheço, do Luiz Pacheco, que acabo de ler, poderia ser, desfraldada ufana aos ventos, a minha, se a vida e seus vendavais raivosos não ma arrancarem das mãos. Juro!

O homem que não sabia escrever

É amiga, é leitora, escreve. E contou-me, nos intervalos dos nossos silêncios que eu, embirrento, por vezes prolongo, que a mãe, quando o pai se ausentava para o estrangeiro, sabendo que ele não escreveria, lhe metia na mala rimas de postais, onde já rabiscara «beijinhos para as três» [elas eram três], pedindo-lhe apenas que os fosse entregando nas recepções dos hóteis, para, ao menos, em casa saberem que ele estava bem. Eterneci-me ao ler, muito, como se, hesitante e envergonhado, postal na mão, tivesse pela frente na vida a recepção de um hotel.

Luiz Pacheco: um não-qualquer

Ter acordado enfim mais cedo com o propósito de conseguir ler. Tomar em mãos o «Diário Remendado» do Luiz Pacheco, comprado há uma semana e atacar, sôfrego, a leitura. Rir por antecipação com a dedicatória a um respeitosamente «senhor doutor» postfaciador, e lembrar quanto o autor o gozou, de soslaio, numa entrevista recente a propósito do dito livro. Sublinhar no que se leu uma frase, das muitas frases sublinháveis. Pacheco é um anarco-bombista da literatura. Libertino das letras, lançava petardos e mandava cartões de pêsames a alguns mortos-vivos da sua especial predilecção. Muitos dos que o lêem são dos que ele diz em ironia que, ao conhecerem um escritor «um tipo que escreve», na altura «não se arreceiam que caiam sob a mira de um não-qualquer, mas duma máquina ou aparelhagem virada para a curiosidade, a perplexidade, o jogo, a provocação e tudo isto com fins práticos, de criar a vida pela escrita». Acordar cedo e sublinhar «criar a vida pela escrita». Tomar banho, sair à rua, o livro como companhia, esganado de vontade de escrever, remendadamente.

16.9.05

A ideia de mãe

Eu hoje faço uma pausa, quem me lê outra, por causa disso mesmo. Ficamos ambos, escritor e leitor de férias um do outro. O Guerra Junqueiro escreveu um livro chamado «A Musa em Férias». Havia um exemplar amarelecido na casa da minha mãe. É por causa disso, precisamente da ideia de mãe, que eu hoje faço uma pausa. Amanhã volto.

15.9.05

Um pintor no Chiado

O homem passeia-se pelo Chiado, penso que pelos lugares onde o Santa-Ritta pintor, para enfurecer as madames, passeava não «lulu», pois o não tinha, mas escova de dentes atada à trela de um cordel. Tentando sacar uma esmolinha, repete lenga-lenga miserabilista, em que as palavras desempregado, e sero-positivo, uma moeda e qualquer coisinha para o jantar se misturam, numa litania em que penso nem ele próprio parece acreditar. Hoje cruzou comigo e, para além do que de habitual diz a todos, acrescentou «e o que o seu coração quiser dar». Ora eu, em matéria de coração, ia à beira de um ataque cardíaco!

13.9.05

A madrugada do amanhã

Há dias tumultuários, em algazarra interior. Chegada a noite, nem se leu, nem se escreveu. Viveu-se. Nem sempre há mais para dizer. Está tudo dito. Entretanto o dia passou. Começa a madrugada do amanhã.

12.9.05

Um lugar para cada um

É uma homenagem de parede, na parede que eu vejo diariamente do meu quarto a frase «domadores de automóveis por moedas de cem». No circo motorizado em que a cidade se tornou, em que há feras em velocidade, e mais o volteio louco de mil e duzentos cavalos de tracção, por onde pululam jibóias ondulantes no trânsito congestionado, leões que cruzam vermelhos, e mais os paquidermes com atrelado dos transportes internacionais, eles, os domadores, são o resto do humano a dominar a fera. É uma vida de risco. Morre-se na estrada. Em troca de cem, cada um deles, braço pendente, no vai-vem do vem-vai rodoviário, inventam o que parece não haver: um lugar. Houvesse essa profissão para as almas, e a troco de cem, arrumava-se o que anda fora de mão e mais o que segue em sentido proibido, para cada um um canto, para todos o seu lugar. Ah!, como se nota, a parede é antiga, a frase é velha, os cem já eram. Mas mesmo com a correção monetária, a verdade circense ainda é o que é.

10.9.05

Azul metileno

Fui comprar o jornal e trouxe-o para casa. Era pequeno e azul. O título era pomposo: «Literatura Portuguesa no Mundo». No fundo era um primeiro volume de uma pequena enciclopédia sobre literatura portuguesa, distribuída com um jornal. Vêm nela os autores, com minúsculas bio-bibliografias. Não cheguei a ver se vinham todos, ou se viriam os mais importantes desses autores. Vi foi que a obra tinha fotografias: logo duas do Eugénio de Andrade, e mais duas do Manuel Alegre, mas nenhuma do Ruben A., como se o importante fosse ajudar a esquecê-lo. Algumas dessas fotografias trazem legendas como uma da Rua Augusta a dizer: «a protagonista de grande parte dos contos de Avenida de Roma é a cidade moderna». O a-propósito é que «Avenida de Roma» [letra «A»] é um romance de Artur Portela [Filho]. Mas a obra traz títulos de livros. E aí é que a coisa se complica. Livro dedicado à primeira letra do alfabeto, encaixa em «A», a martelo, o livro «Amor é fodido, O» um romance do Miguel Esteves Cardoso, que, já agora, se calhar cabia melhor na letra «F». É claro não traz a «Aparição», como se fosse um livro sem importância alguma, que obviamente nem valesse a pena referir, assim dando espaço para as «Aparições», explicando que é uma «colectânea de poesias de Guilherme de Azevedo». Naturalmente, colectânea incontornável! E assim sucessivamente. Prometo comprar os outros todos, jornal a jornal. São momentos de bom-humor garantido. Do Lobo Antunes o azuláceo opúsculo publica com destaque uma foto acompanhada de um (1942-) para que se perceba que o homem ainda não morreu e adita-se-lhe a legenda «António Lobo Antunes foi várias vezes proposto para o Prémio Nobel da Literatura», lembrança apta a irritar o autor até à apoplexia, o que dá ao traço um valor simbólico nada despiciendo.

O pavilhão dois

É assim como num imenso hospital, a blogoesfera. Saio ao meu corredor, e no pavilhão dois, porta a porta, como em celas monásticas, ei-los, internados, a sua loucura como única companhia fiel nas madrugadas ansiosas. São, na diminuta clausura de que fazem lar, momentos únicos de beleza. Há no sangrarem-se, esvaindo-se em vida, a beleza inflamada do vermelho dos seus quadros e muitos pintam. Quantos outros fazem da nevrose literatura. Passeio-me silencioso. Talvez eu devesse respeitar o sofrimento de cada palavra, o desespero de cada cor. Muitos estão às grades, mãos enclavinhadas e raivosas, os olhos a pedir que olhem para si. O afago de um comentário lhes bastaria.

Clonc, clonc!

Vai ser em Alpedrinha uma «Feira de Chocalhos» e na próxima sexta-feira. Rebanhos orgulhosos, bali! A coisa promete. Os adornos da vossa servidão é ali que se mostram. Ah! Actua também ali um conjunto chamado, em modo sugestivo, «Gaitafolia». A coisa promete e é já na próxima sexta-feira. Por mim, fico por cá, com o «morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela, será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela». Gostos.

O comboio das duas

Eu confesso que às vezes se cria nestas coisas da blogoesfera o complexo da Cinderela. Na ânsia de vir aqui todos os dias, a meia-noite passou a ser o limite além do qual se atinje o impossível. Estou como o empregado da noite que corria esganado para o comboio das duas da madrugada, ante o horror de esgotar num táxi o que não almoçara. Hoje não consegui. Aqui estou, por isso, descalço e esfaimado!

8.9.05

O belo e o bom

Todos os dias a luta pertinaz pelas obrigações e a ânsia de assomar a uma janela em busca de ar. Não a esta janela propriamente, cúmulo de reminiscências sublimadas, mas a uma qualquer escotilha de onde se divise o marulhar do oceano. Já dormi pela noite numa camarata empilhada de um navio em sobressalto. Atulhados na terceira classe nós e uma mescla de cheiros pestilentos, a suores ácidos e refogados avinhados. Eu era o mais novo. Tinha dezassete anos e viajava assim. Ainda hoje, sem esforço, lembro-me dos ruídos nocturnos, dejectos, defecantes, enojados de tanto vomitar. O mundo nem sempre é belo, a vida nem sempre foi boa. Quando chove e a natureza estrepitosa lava o que existe, renovo-me por dentro, pertinaz sempre, ansioso por amanhã.

7.9.05

Papel em branco

Nos tempos em que eu ainda andava nas primeiras letras havia uns cadernos com duas linhas, dentro das quais nós, crianças desprevenidas, destinadas à ordem e treinadas para a arrumação, tentávamos encaixar a nossa hesitante caligrafia e através dela as palavras que pouco tinham para dizer. Depois, com a juventude, veio a tristeza em papel branco, as palavras em verso e a caligrafia descuidada. Muitos passaram-se no estado adulto para o papel quadriculado, o do mundo das contas dentro do universo dos números. Alguns outros tiveram a sorte do papel impresso, e são escrevinhadores ácidos a corpo onze e a cinco colunas, poucos de todos exprimem-se desbragadamente em livro. Tivessemos consciência de nós e escreveríamos a papel vegetal, copiando o que os outros escreveram. Não damos conta, mas somos a geração que não tem nada já para dizer!

Cor de burro e quando foge

A língua portuguesa tem fraseologias inesperadas. Imaginar-se que se pode dizer amuar através da frase «amarrar a burra», não é para todos: muito menos para os burros que amuam! Agora o mais interessante é que o desamuar diz-se, na mesma forma elíptica, «desmontar da burra». O que é altamente equívoco e altaneiro, sobretudo para quem fica apeado.

6.9.05

Saudades da badana

Tentei ler o Jorge Listopad, por duas razões. Primeiro, porque nunca tinha lido nada dele. Segundo, porque eram pequenos contos, quadros e cenas, daqueles que se lê um [conto] e se vai jantar, vai outra [cena] antes de dormir. Claro que vi na badana do livro que ele é da Academia das Ciências e também da Academia de Belas Artes e também ainda catedrático jubilado. Bom! Mesmo assim, tentei ler o Listopad, mas não fui capaz. Já sei! Adio o projecto! Talvez para este fim de semana: um [quadro] ao pequeno-almoço, para começar, guardo a cena para a merenda. O segundo volume tem um prefácio escrito em Vilamoura! Ora aí está o porquê!

5.9.05

O livro das horas

Com a passagem das horas e o sumir-se do sol, a estante primeiro, logo a réstea de parede, enfim o umbral da janela vão perdendo progressivamente a luminosidade que lhes dá a aparência de vida, o encanto da cor. Uma penumbra acastanhada que o anoitecer degrada em cinzento assenhoreia-se de tudo. Mal consigo divisar dos livros as lombadas, não consigo nelas perceber do que tratam. Na rua os poucos passeantes parecem vultos. E no entanto, em alguns desses livros estão viagens minhas pelo imaginário da surpresa, muitas dessas silhuetas proporcionar-me-iam o encanto da descoberta. Falta-me luz. Talvez a ideia do amanhã me reconforte. Para onde não chegar esta esperança, resta-me a luz eléctrica.

4.9.05

Fogo!

O painel era imenso, posto numa monótona auto-estrada, despida de árvores, tão seca que não havia nada para arder. Mas estava lá. O essencial dele era uma fotografia de uma mata ardida, tudo em tons desolados de cinza, com troncos carbonizados em evidência, para ilustrar o desastre de um incêndio. A legenda é que era de um ridículo total. Dizia, em tom melífluo, que uma beata jogada pela janela, «pode prejudicar a floresta». Assim mesmo «prejudicar», neste estilo, quase diria hesitante, timorato, como se falando timidamente de uma insignificância, diria a pedir desculpa de lembrar. Um aviso num canteiro a pedir para não pisar a relva era capaz de ser mais afirmativo. Com cartazes destes estamos todos incinerados!

3.9.05

Há quem se ria na ria

O dia atazanava de calor. A fome apertava. Ao longo do passseio, ciganas vendiam roupas baratas, uns negros, óculos de sol, tudo produtos com marca igual às marcas. Zaranguitando a caminho do restaurante possível, conversa tartamuda, a fome a ensarilhar as ideias, dei com ele. Comia uma sopa de cenouras de uma malga em plástico. Vendia um livro, o seu livro de versos, poemas, os seus poemas avulsos. Olhou-me do interior profundo de si, uns olhos encovados num rosto envelhecido à força das barbas brancas. Prometi-me que no regresso lhe compraria qualquer coisa. Falhei deliberadamente, por pudor. Agora recordo o seu anúncio, num papelito sem graça: tire um poema e deixe uma moeda. Podia ser o lema deste blog, menos o jardim. Adoro sopa de cenouras.

2.9.05

A transmigração das almas

Depois de ter escrito há momentos sobre o Luiz Pacheco, lembrei-me do que há uns poucos anos escrevi no «Jornal de Negócios», numa crónicas a que chamava «O Baile de Máscaras». Aí lembrei que o homem que para si recusa o epíteto de «escritor maldito» havia editado em 1970 os seus «Textos de Guerrilha». Num desses textos iconoclastas Pacheco lembrava a lista dos ilustres artistas convidados pelo Presidente da República para um jantar no Palácio de Belém. Só que com um pormenor provocatório: o Venerando anfitrião era o almirante Américo Tomás, que o 25 de Abril apeou de Presidente; o convidado o cineasta Manuel de Oliveira [mais tarde crismado como Manoel de Oliveira] o mesmo que, provocatoriamente também, em “Non ou a vã glória de mandar”, ligaria o 25 de Abril a Alcácer Quibir. Tudo com um final fantástico: no filme «Conversa Acabada» o realizador João Botelho mascara o Pacheco como Fernando Pessoa «moribundo e logo esticado, com o Manoel de Oliveira, padreca, a rezar-lhe o responso, num latim esgosmado». É mesmo caso para dizer, alma encomendada, alma ressuscitada.

Individualismo colectivista

O Luiz Pacheco, na entrevista que deu ao Rodrigues da Silva, para o último número do JL, diz que não vê televisão para não se sentir mais isolado. O mesmo sentem, por paradoxal que pareça, os que vivem em apartamentos equipados com antena colectiva.

1.9.05

O remanescente

E, no entanto, a ideia de que toda aquela literatura pudesse ser auto-biográfica, como se descrevesse, afinal, incessantemente, sob várias formas, a mesma vida e remoesse as mesmas obsessões, perseguia-o. Talvez, por isso, a incapacidade de escrever, como se não houvesse um qualquer futuro para viver e já não houvesse modo de contar, uma vez mais, o mesmo passado. Hoje, remanescente naquele local de veraneio, o vento por companhia, tinha diante de si, povoando-o, a angústia do papel em branco: a amnésia do mundo de ontem era a sua doença. Todos os anúncios de jornal pareciam dizer-lhe respeito.

A época baixa

Terminara, enfim, a época balnear e parecia que só ele ficara. Lá dentro, atarefadas criadas arrumavam camas agora inúteis, toalhas para a próxima estação. No pátio, o velho porteiro, lavava, silencioso, o chão à mangueira. Uma brisa fria, sentidamente marítima, salgada, áspera, agitava as copas das palmeiras na esplanada vazia. Sozinho, confundia o quarto com a casa, um momento com uma vida. Descobriu o que é ser hóspede, a meia-pensão. Hoje restava-lhe aquele livro, não o que lia, mas o que não conseguia escrever.